quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

A força trágika de Glauber Rocha

Quarta conferência relâmpago
Glauber Rocha ainda estava por se transformar no génio do cinema novo brasileiro quando realizou seu primeiro filme, «Barravento», entretanto, é fácil perceber que este filme possui uma série de esboços para uma nova estética artística do cinema.
O argumento foi escrito pelo próprio GR em parceria com José Telles de Magalhães, a partir de uma ideia de Luíz Paulino dos Santos, que é quem deveria realizar o filme, mas, como o cinema tem dessas histórias, esta função acabou por ficar sob a responsabilidade de GR.
Rodado em Buraquinho, uma praia de pescadores localizada no interior da Bahia, em 1962, «Barravento» é, como o próprio texto de abertura explica ao público, «o momento de violência» da terra com a natureza, portanto, a explosão originária do encontro da história com o mito.
É um filme que mostra as contradições humanas a partir das relações de trabalho entre os pescadores que são submetidos a um regime de exploração pelos pequenos empresários (também conhecidos como «atravessadores»), que condicionam seu apoio material à pesca do xaréu a um acordo de compra do peixe por um preço bastante reduzido, o que lhes permitirá uma grande margem de lucro sobre o produto quando este for levado para abastecer o mercado de Salvador, cidade-destino do peixe de Buraquinho.
Nesse texto-prólogo, GR deixa sua marca política de ser humano com consciência social e denuncia a submissão dos pescadores e dessas populações a um imaginário religioso, onde assentam justificativas para suas dificuldades económicas. Ao dizer que os personagens são fictícios mas que os factos existem, GR desloca o filme da ficção para a realidade. Os conflitos entre as personagens de «Barravento», portanto, jamais poderiam ser de ordem romântica, são puramente sociais.
Firmino, representado por António Pitanga, actor que acompanhará GR em quase todos os seus outros filmes, é a personagem que protagoniza «Barravento». Deixou Buraquinho para tentar vida na cidade e agora está na sua terra a brindar com amigos mas também a estabelecer relações conflituosas com eles a partir de suas novas ideias. Firmino é a cidade em choque com o interior. Representa um pouco a figura do malandro, não gosta de trabalhar para ninguém, não concorda que os pescadores de Buraquinho trabalhem para terceiros e também não acredita «nesse negócio de religião».
Aruan, que é o actor Aldo Teixeira, é uma espécie de liderança de Buraquinho, mas respeita e obedece ao mestre-pescador (Lídio Silva) que «comanda» a pesca do xaréu, mas que, para a insatisfação de Firmino, aceita as exigências dos pequenos empresários («atravessadores»). Aruan é o espírito pacato de uma vila (ou aldeia), tem força interior para reagir contra as injustiças mas opta pelo prolongamento de seu silêncio, somente no final do filme é que o veremos decidir-se por ir à cidade para trabalhar e juntar dinheiro para comprar uma rede nova.
Firmino e Aruan vão protagonizar as cenas mais importantes do filme, entretanto, colocados desta forma, estes episódios quotidianos de pessoas comuns nem parecem conflitos. E esta é uma característica que vai marcar a obra de GR desde «Barravento» até «A Idade da Terra», seu último filme, de 1980, mas que aos poucos, gradativamente, GR vai caminhando do real para o mito, ou seja, vai situar sua filmografia numa realidade que ele, GR, construirá com base na estrutura mítica e nas tradições oral e trágica. O homem comum terá, para GR, uma força histórica, e tal qual a história, será um caleidoscópio de contradições.
Por submeter-se ao mito, o povo de Buraquinho é vítima de um «fatalismo trágico», conforme anuncia o texto-prólogo. As gentes habitantes deste espaço tropical e bucólico, em que a beleza paisagística dá um toque de tranquilidade, têm suas raízes assentadas na cultura africana, de onde herdaram o respeito às entidades e forças da natureza, fundamentalmente o culto à Yemanjá, a rainha de todas as águas segundo o candomblé. É Yemanjá que pode provocar ou evitar as tempestades e ventanias marítimas ou proteger os pescadores do mal tempo e/ou das adversidades do mundo, mas, para que isso ocorra, será preciso muito fé e esta fé deverá ser mostrada no culto à rainha da mar.
O cenário das filmagens não poderia ser melhor escolhido e, segundo o texto-prólogo escrito por GR, a equipa contou com o apoio de toda a população, «principalmente dos pescadores, a quem o filme é dedicado». O filme dura 70 minutos e nele se vê muita dança, samba de roda, capoeira, afoxé, ouve-se muito tambor, e contempla-se quase sempre a beleza dos coqueirais típicos das beiras das praias baianas. Sob este ponto de vista, portanto, «Barravento» é um filme riquíssimo. Através dos olhos do câmara Luíz Carlos Barreto, hoje um dos mais importante produtores de cinema do Brasil, GR mostra os rituais de candomblé, cujos atabaques e tambores estarão fortemente presente na montagem final, a cargo de Nelson Pereira dos Santos («Vidas Secas»), ou seja: além dessa aura imagética que revela os mistérios de um povo amordaçado por um «fatalismo», «Barravento» também reúne na sua equipa técnica um grupo de amigos que mais tarde faria uma verdadeira revolução e construiria a história do cinema brasileiro para os próprios brasileiros e também para o mundo.
Em «Barravento», GR nos oferece pistas de um novo conceito de cinema num momento em que arte conceptual ainda nem era um tema dos média. GR é passional no que se refere aos sentimentos de sua brasilidade, o que torna poético e absolutamente pessoal algumas das imagens do filme. Os corpos seminus dos pescadores a lutar com o peixe sob o sol de Buraquinho deixam isto claramente evidenciado.
Esta, digamos, pessoalidade glauberiana introduz, neste filme, uma série de elementos que acompanharão GR ao longo de todas as suas realizações cinematográficas: a crítica a atrofia religiosa de um povo que aceita sua condição de dominado por não ter consciência de seu processo histórico, que submete-se ao misticismo porque tem medo de tentar subverter a ordem das coisas (este é o caso, por exemplo, de «Deus e o Diabo na Terra do Sol») ; o choque de consciência e de ideais entre o habitante das grandes cidades e o morador dos casebres de palha das vilas interioranas (como é o caso de «O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro», basicamente na parte final do filme, quando António das Mortes caminha do mato para a cidade e reconstrói uma fuga natural das pessoas fartas das mazelas do campo); as estratégias de exploração e de dominação de patrões contra empregados, alicerçadas no poder económico dos primeiros e na fraqueza mental dos segundos (exemplo clássico de «Terra em Transe», nas cenas em que os manifestantes populares sequer conseguiam erguer a cabeça para olhar os olhos do governador da província de Alecrim).
GR é e foi e sempre será GR. Seu olhar ainda está a tactear contrastes e movimentos fotográficos em «Barravento» mas é possível já aí identificar o quanto aqueles olhos já são os olhos de um visionário. A explosão sonora dos atabaques do candomblé sobre as imagens das ondas a quebrar na praia simbolizam, no filme, a vida que se revela mas que escapa aos homens mortais comuns, deixando-lhes um rasto cruelmente místico. Captadas pela fotografia de Tony Rabatoni e Waldemar Lima, os pescadores negros a lançar e a puxar a rede ao mar ou a dançar samba de roda e capoeira, mais as mulheres que participam dos rituais de candomblé (mães e filhas de santo), funcionam como uma espécie de alegoria sensualíssima que evoca, por um lado, a beleza corpórea dos negros e, por outro, a redução de suas existências apenas àquelas actividades, como se nada mais se passasse na vida além do trabalho e da devoção à Yemanjá.
GR só está a começar a fazer cinema com «Barravento», mas já é um génio artístico: já fez teatro na escola, já participou da «jogralesca», com leitura de textos e poemas, já escreveu um argumento, com 16 anos de idade, o «Senhor dos Navegantes» (ainda inédito), que se passa também entre os pescadores, e já comprou sua primeira câmara de filmar com o dinheiro que seu pai lhe ofereceu para comprar um carro.
É pelas mãos de GR que se começa a escrever uma nova história do cinema a nível mundial e esta história inicia, é claro, a preto e branco. GR é ainda muito jovem quando realiza «Barravento» e já entra em cena para dar um novo curso a um argumento que ele não criou originalmente. O que seria um documentário sobre a pesca do xaréu transforma-se numa h(e)istória que poderia ter passado ou pode está a passar agora mesmo em qualquer vila de pescadores localizadas numa das inúmeras praias brasileiras.
A força de GR é essa: não há um filme seu que tenha perdido actualidade. GR não faz cinema datado, isto ele deixa lá aos ideólogos da cultura que se preocupam com cronologias e temporalidades.
© Francisco Weyl (Carpinteiro de Poesia e de Cinema)

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