quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Fotografia e Poesia

Terceira conferência-relâmpago
Independentemente de suas manipulações laboratoriais, simples ou complexas, realizadas posteriormente ao acto fotográfico, que é exactamente aquele momento em que o fotógrafo dispara a câmara para obter um registo de uma determinada imagem, a fotografia fixa em papel a imagem que se eterniza e se dissipa com o tempo.
Imaginemos um fotograma de um filme colorido revelado à preto e branco, ou seja, imaginemos um fotograma original com uma imagem à cor, mas cuja revelação é processada à preto e branco.
Imaginemos que este fotograma colorido revelado à preto e branco foi colocado no ampliador de forma, propositadamente, invertida, ou seja, na imagem original um homem caminha para um lado e na imagem revelada este homem está a caminhar para o lado oposto.
Qualquer fotografia é, em si, uma reprodução diferenciada e invertida de uma realidade ainda mais diferenciada e invertida, mas esta fotografia que vos peço que imaginem é um espelho poético de um homem que se chamava Diniz Albano Gonçalves.
Este homem era um poeta que, quando escrevia versos, assinava-os com o pseudónimo de Sebastião Alba. Entretanto nenhum desses dois poetas, este captado pela foto a caminhar em uma direcção e este que, revelado, caminha em direcção contrária, poderá ser olhado em essência ou realidade, apenas em aparência e representação.
Os dois a caminhar para lados opostos são um só poeta, que agora está morto, mas que, representado pela fotografia, eterniza-se, em aparência. E mesmo que o poeta ainda estivesse vivo, com o seu corpo, já que seu espírito permanece entre nós com a sua obra, uma imagem fotográfica seria incapaz de permitir que o víssemos em essência, pois a fotografia é uma ilusão da realidade.
Antes de analisar a relação entre as duas fotografias, a obtida a cores e a revelada de forma invertida, à preto e branco, antes de responder o que é que uma fotografia tem a ver com a outra eu pergunto: o que é que a fotografia tem a ver com a vida?
Se a fotografia for uma arte no sentido da arte definida por Friedrich Nietzsche, ela será a própria afirmação da vida, mas, se ela for objecto de estudo nas mãos dos críticos cuja interpretação é pura lógica e racionalidade científica, então, ela será só o reflexo e o decalque de uma imagem que em si já é aparência, uma imagem falsa de uma imagem ainda mais falsa: a realidade dos covardes e dos derrotados.
As reproduções de um mesmo fotograma, um à cor, a obedecer o registro original, e outro à preto e branco, com o negativo invertido, não são reproduções de nenhuma representação ou aparência. O poeta Sebastião Alba agora já está morto, mas não a sua poesia, porque, quando criava, ele sentia a poesia que não lhe pertencia, sendo ele a pertencer à poesia que se lhe criava.
Impressa em papéis fotográficos, qualquer imagem é mais morta que os mortos. A fotografia, sabemos disso a partir de leituras de Walter Benjamin e Susan Sontag, apenas representa a coisa representada, ou seja, representa a vida que se representa para a fotografia. Mas a imagem desse poeta morto, entretanto, não poderá mais representar coisa alguma, apenas evocar um momento em que a fotógrafo disparou sua máquina e registrou um átimo de vida deste poeta.
A fotografia tema deste artigo foi obtida no primeiro dia em que o fotógrafo conheceu o poeta e com o mesmo espírito nietzschiano que envolve qualquer produção verdadeiramente artística. O fotógrafo como autor, não da arte, mas de algo que dá origem à arte, segundo Susan Sontag, cria uma relação com o mundo de forma distanciada e ambígua, ora de assédio, ora de submissão. Quando desvenda a realidade oculta, cria um eu individualizado e manipulável através de sua antologia visual. E como há rasgo de esquecimentos na memória selectiva, o ato de fotografar somente pode ser recordado e registrado nessas condições.
Walter Benjamin ensinou que se retrata para ressaltar o valor de exposição da obra e, simultaneamente, destruir-lhe o seu valor de culto. Arrisco afirmar que o ser não cria coisas, estas é que se fazem à sua revelia, técnicas apenas servem ao artista durante o processo de construção de sua obra, necessariamente inconclusa, ou, no dizer de Humberto Eco, aberta.
O fotógrafo, portanto, não tem que saber a fotografia que faz, ele tem que senti-la, mas não necessariamente com o poder de saber o que está enquadrado pela câmara. Só assim ele tornará a fotografia em poesia, e a exemplo da poesia, a fotografia não se escreve na grafia mecânica do papel e/ou da máquina. O fotógrafo tem que saber a fotografia que faz mas não como aquele que controla a sua vida, não com perfeição técnica, pois a perfeição é um mito apolíneo que despreza a natureza das coisas e a técnica é um monstro que se criou no entulho da cultura, enquanto a fotografia mora no ato solitário de fotografar, na coragem de instrumentalizar a arte para o não explicável.
Imaginemos: se um fotógrafo utilizar a sua câmara e apontá-la aleatoriamente para qualquer direcção e dispará-la, ele não saberá se a câmara estará no manual ou no automático, não saberá o nível de abertura do diafragma, não saberá o que está enquadrado pela câmara, e isso não poderá lhe fazer a menor diferença, porque ele estará entregue à fotografia, sem sabê-la, mas sentindo-a, sabendo-a na mesma porque não a viverá. Fotografia é poesia e por isso é arte, é o que não existe e o que não existe não é para ser vivido.
Quando Sebastião Alba escrevia poemas, ele não vivia o seu poema, fazia-o, é como a fotografia ao acaso, na sua força e na sua coragem: depois do poema escrito ou da fotografia realizada, pode-se ir ao laboratório e usar papéis, tempo de exposição à luz, ou no caso do poema, retirar verbos, alterar expressões, reduzi-lo a concepções de unidade linguística, mas então nem o poema será mais poema e nem a fotografia será mais fotografia, porque aquele instante único já será passado, o que quer dizer que não se pode prendê-lo ou eterniza-lo com o saber ou com uma imagem, apenas senti-lo, vivê-lo.
É o poema que se escreve a si próprio e é a fotografia que se revela a si mesma. Aceitando esta natureza, saber sem saber, o poema e a fotografia se manifestarão naturalmente. Talvez assim sejamos capazes de sentir sem saber a vida que vivemos.
© Francisco Weyl (Carpinteiro de Poesia e de Cinema)

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